segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Dois Papas




Dois Papas é uma obra cinematográfica sobre o encontro dos dois últimos papas da igreja católica romana. Desde o Conclave de 2005, com a eleição do cardeal alemão Joseph Ratzinger como Papa Bento XVI, sua renúncia em 2013, até a eleição do cardeal argentino, Jorge Bergoglio, como Papa Francisco.


O melhor filme que assisti nos últimos tempos, Dois Papas me arrebatou com seu conteúdo, seu fluxo e equilíbrio, sua medida justa (sem excessos), mas sem dúvida, sua capacidade de sintetizar tantos assuntos importantes:

Sincretismo – não absolutamente de doutrinas diferentes, mas de duas personalidades com experiências e visões tão diferentes, ambas ancoradas sob uma mesma instituição religiosa;
Respeito e tolerância (em tempos de globalização da opinião avulsa e demérito do estudo e da pesquisa);
Representatividade (Papa Francisco como o primeiro papa jesuíta e sul americano em 2 milênios de instituição);
Lei sistêmica da Ordem (um Papa honrando, antes de mais nada, e apesar de toda diferença de visão, aquele que o precedeu):
Dores latino-americanas ainda latentes: ditadura e opressão;
Humanização de autoridades religiosas;
Fragilidade de uma das maiores instituições religiosa e política – a igreja católica romana;
Espiritualidade nas coisas banais e rotineiras (quando o cardeal Bergoglio usa conceitos religiosos para explicar o “espírito” do jogo coletivo que é o futebol);
“O caminho do meio” budista: começamos o filme com um protagonista e um antagonista, clássicos, e terminamos o filme com dois protagonistas. Simbólico, não?!

Falar sobre tudo que esse filme me suscitou levaria horas sem fim. Portanto, vou apenas fazer pequenos destaques, recortes do que mais me tocou – daquilo que deixou em mim reflexões e gratidão pela constatação de saber-me um ser poroso, penetrável e mutável.

É muito fácil se apaixonar (se identificar) pelo cardeal Bergoglio. A interpretação magistral de Jonathan Pryce, deixa um canal limpo para assimilação da humanidade dessa autoridade religiosa: sua alegria, sua abertura, seus pequenos prazeres mundanos (apaixonado pelo futebol e pelo tango), suas escolhas equivocadas, suas dores e arrependimentos, sua autocrítica e superações reveladas em uma decisão e esforço em ser humilde e caridoso, sua criticidade corajosa. Tudo nele é demasiadamente humano e singelo.

Já não é tão fácil para nossa latinidade se conectar com o alemão Ratzinger (impecável Anthony Hopkins). Este nos traz facetas menos apreciadas por nós. É mais fechado, um teólogo erudito, catedrático, rebuscado, sisudo, solitário/isolado, que, ao longo do filme, por uma narrativa que busca com êxito aproximá-lo gradativa e moderadamente de nós, nos explica que, talvez, por não ter vivido a sua infância de forma pueril, mas distante da leveza e liberdade próprias de uma criança, se tornou um adulto isolado, fechado, demasiadamente sério. Sem dúvida é uma explicação que ganha nosso afeto, trazendo à tona nossa empatia.

O verdadeiro encontro, tão sublime nesta obra, se dá à medida que o encontro entre autoridades religiosas dá espaço para o encontro entre humanidades diferentes e complementares. Testemunhamos um casamento de almas alicerçado no respeito, na admiração recíproca, no propósito comum de encarnar a palavra de Deus.

Ah! E que beleza a constatação, bem clara e diante de nossos olhos, do respeito à lei sistêmica da Ordem (Bert Hellinger). Quando, no discurso de nomeação do Papa Francisco, ele, antes de mais nada, convoca a todos para orar pelo ex Papa Bento XVI. É comovente demais! Honrar o que nos antecede é poderoso, é natural, é curativo, é se colocar a favor do fluxo da vida.

“Irmãos e irmãs, boa noite!
Vós sabeis que o dever do Conclave era dar um Bispo a Roma. Parece que os meus irmãos Cardeais tenham ido buscá-lo quase ao fim do mundo… Eis-me aqui! Agradeço-vos o acolhimento: a comunidade diocesana de Roma tem o seu Bispo. Obrigado! E, antes de mais nada, quero fazer uma oração pelo nosso Bispo Emérito Bento XVI. Rezemos todos juntos por ele, para que o Senhor o abençoe e Nossa Senhora o guarde.”

O filme me trouxe flashes de outras “ambivalências”: o livro-diálogo do Padre Fábio de Melo com o filósofo Leandro Carnal; Freud e Jung e por aí afora.

Sigo, horas após assisti-lo, inspirando e expirando esse encontro fictício, que bem poderia ter sido real. Se não o foi, então, que ele seja real pelo menos dentro de nós, ao comungarmos nossas contradições, nossas polaridades, nossas verdades e medos – a comunhão “do bispo e do povo” que nos habita.
“E agora iniciamos este caminho, Bispo e povo... este caminho da Igreja de Roma, que é aquela que preside a todas as Igrejas na caridade. Um caminho de fraternidade, de amor, de confiança entre nós. Rezemos sempre uns pelos outros. Rezemos por todo o mundo, para que haja uma grande fraternidade. Espero que este caminho de Igreja, que hoje começamos e no qual me ajudará o meu Cardeal Vigário, aqui presente, seja frutuoso para a evangelização desta cidade tão bela!
E agora quero dar a bênção, mas antes… antes, peço-vos um favor: antes de o Bispo abençoar o povo, peço-vos que rezeis ao Senhor para que me abençoe a mim; é a oração do povo, pedindo a Bênção para o seu Bispo. Façamos em silêncio esta oração vossa por mim.”

O Papa Francisco abaixou a cabeça em sinal de oração e todo o povo silenciou por um momento. O mesmo homem que durante a cerimônia do Conclave assoviava, faceiramente, Dancing Queen.

Antes de encerrar, vale destacar que coube principalmente à trilha sonora dar os preciosos pitacos cômicos e de bom humor à obra. Dancing Queen – Grupo Abba / Blackbird – Beatles / Bella Ciao – Banda Bassotti / Bésame mucho / Guantanamera...

Viva Fernando Meirelles!
Viva o cinema!
Viva Anthony McCarter!
Viva Jonathan Pryce!
Viva Anthony Hopkins!
Viva a vida!!!






quarta-feira, 29 de maio de 2019

Girl


Filme belga de 2018, dirigido por Lukas Dhont.
Indicado ao Prêmio Globo de Ouro: Melhor Filme Estrangeiro  

Questionei-me se deveria escrever sobre um filme que fala do universo transgênero, uma vez que não estou tão familiarizada com estas questões. Todavia, o filme me foi tão tocante, que resolvi arriscar priorizando os pontos que me sensibilizaram e despertaram o interesse em divulgá-lo.

Girl conta a história de uma adolescente belga, Lara, que aguarda ansiosa pela operação de troca de sexo. O respeito e a quase naturalidade da transexualidade de Lara em seu contexto familiar e social são chocantes para países como o nosso, principalmente para o Brasil que continua em primeiro lugar no ranking dos países que mais matam transexuais no mundo, segundo a ONG Transgender Europe (TGEU). Esse dado me dispensa desvelar a falaciosa crença brasileira de que somos um povo sem preconceitos e tolerante – duas qualidades que, a meu ver, só podem surgir, legitimamente, em sociedades minimamente instruídas e em culturas conectadas com sua natureza. Definitivamente, e lamentavelmente, não é o nosso caso.

Mas não quero continuar nesse rumo, pois careço de (in)formação, além de perder a oportunidade de me deleitar com aquilo que mais gosto - refletir sobre aquele “não sei o quê” que me toca a alma em momentos de distração cinematográfica.

Logo nos primeiros minutos percebemos Lara numa ansiedade contida, contando as horas para acabar definitivamente com qualquer resquício que possa lembrá-la que nasceu em um corpo, cujo gênero não corresponde à sua pessoa. Ela vive a totalidade da puberdade, com seus conflitos e exigências de aparentar ser o que já se é e não se sabe. Não sou transgênero, mas sou mulher e sei, por experiência, que ainda adolescente, com todos os meus hormônios em festa, sentia uma necessidade hercúlea de afirmar minha feminilidade com tudo que eu entendia como tal. Com Lara, naturalmente, não foi diferente.

Gosto muito de uma frase do Deepak Chopra que diz: “Toda semente traz em si a promessa de muitas florestas”. Aos 7 minutos de filme, o doce e presente terapeuta de Lara resume todo o processo psicológico que ela passa ao dizer: “_ mas você já é tudo o que será”, na intenção de acalmá-la, de desapressá-la, de ilustrar que tudo, absolutamente tudo, tem seu tempo. É que a semente é a floresta. Basta-lhe o tempo da manifestação. E não é assim que a vida se dá? Quem nunca fez uma pausa em Eclesiastes 3?

“Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu.
Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou; ...”


É possível que eu desaponte muitos que vêm no filme uma bandeira sobre as questões de gênero e do feminismo. Peço que me perdoem o recorte, mas é que a minha conexão se deu para além dessas questões – me interessou aqui o indivíduo em si mesmo. Apesar da dedicada e preparada equipe médica e psicológica que acompanha Lara, do apoio amoroso e incondicional do pai, da compreensão dos familiares, da aceitação razoável nas esferas sociais em que Lara convive, o conflito interno está ali – como prova do imanente em nós. A cena urbana de Lara em meio à multidão; um pontinho entre tantos; um conflito entre tantos outros – uma multidão de iguais em suas diversidades.  Tão belo!

Em um momento de esgotamento psicológico, numa conversa franca com seu pai, ele tenta motivá-la, reanimá-la, aprumá-la, mostrando como ela é um exemplo de coragem para tantas outras mulheres trans. Lara responde, “Não quero ser exemplo. Só quero ser uma garota”. Portanto, não serei eu, nesse insignificante post, que levarei essa história que pretende apenas ser a história de uma adolescente trans. Simples assim, em sua complexidade.

Como deixar de falar de sua relação obstinada com a dança? Tenho alma bailarina!

É na dança clássica que ela acaricia e afaga seu lado mais feminino, embora desde o primeiro minuto o filme nos mostre sua alma feminina se expressando no cuidado com o irmão caçula, na habilidade de administrar as atividades domésticas compartilhadas com o pai. É em seus árduos treinos que ela testa sua capacidade de superar limites. É no apoio dedicado e fiel de sua professora de dança que ela encontra o apoio para persistir. É no seu grupo de colegas bailarinas que sua verdade é colocada em xeque. É o suor que começa a molhar seu collant nos revelando, gradativamente, a transformação da pedra em ouro. Que alquimia maravilhosa! A última cena do filme nos dá um vislumbre futuro da linda mulher que se desvelou.

As falhas técnicas do filme, sua precária filmagem nas cenas de dança que, por vezes, nos deixa meio zonzos, as reflexões sobre as minorias que o filme pode e deve levantar, a escolha de um ator cis gênero para o papel de Lara – tudo o mais, deixo para os verdadeiros críticos de cinema.

terça-feira, 21 de maio de 2019

“Um Homem de Sorte”




Também poderia ser -  “Um homem e sua constelação”.

Trata-se de um filme dinamarquês dirigido por Bille August, o mesmo diretor de “Trem noturno para Lisboa”.

Filme longo (mais de 150 minutos), focado nas angústias, traumas e ambições do personagem central - Peter Andreas Sidenius.

Peter é um estudante de engenharia, visionário, ávido por abandonar definitivamente o emaranhado familiar cujas crenças religiosas chocam com sua visão de mundo a ponto de tolher suas ambições profissionais. Em Copenhague, onde consegue ser admitido numa faculdade, se envolve com uma rica e influente família judia na tentativa de conseguir apoio para seu projeto, revolucionário para a época, de geração de energia renovável. A família Solomon não só o apoia no ambicioso projeto, como também permite seu noivado com a filha mais velha, então noiva de um afetuoso viúvo judio, bem mais velho.

A meu ver o longo filme é primorosamente sustentado por dois temas principais: o delicado e suscetível afeto que se desenvolve entre Peter e Jakobe (a filha mais velha) com as discrepâncias de suas respectivas origens e percepções; e o emaranhado de sentimentos mal interpretados e mal resolvidos que Peter nutre por sua família de origem, acreditando, ingenuamente, que o simples abandono de sua terra natal seria a solução. Ambos os temas estão intrinsecamente ligados, uma vez que projetamos em cada nova e importante relação nossas demandas afetivas mais dolorosas e enraizadas.

Foi inevitável enxergar neste enredo as leis sistêmicas reveladas pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, autor das Constelações Familiares. Principalmente a Lei da Hierarquia (ou Ordem) e a do Pertencimento.

Peter, ao negar sua origem, especialmente na figura do pai, perde sua força, seu centro e, por conseguinte, sua lucidez. Honrar pai e mãe, aceitá-los exatamente como são, para além dos julgamentos (se estão certos ou errados) é essencial para nosso amadurecimento, para a descoberta necessária da matéria-herança da qual somos feitos. Nossos pais vieram primeiro e devem ser respeitados. O respeito sistêmico transcende crenças e valores individuais. Nossos pais são nossos portais de origem, de onde viemos. Querer modificá-los é não aceitar parte de nossa própria essência.

Ao longo do filme vemos um sujeito perdido entre o amor não reconhecido que o liga à sua família de origem e a dor contida, manifestada em birra, intransigência e orgulho advindos do medo de não pertencer, de não ser adequado, de não ser acolhido - em última instância, de não ser amado.

Peter personifica a pessoa vinculada a uma constelação, ou seja, a um sistema familiar, que necessita ser reconhecida como membro integrante desse sistema, independente de suas dificuldades ou virtudes pessoais. Afinal, todos nós temos um papel importante em nossa constelação e não devemos ser excluídos ou nos sentirmos excluídos, pois temos todos os mesmos direitos de pertencimento.

Quando, mais tarde, Peter se encontra no papel de pai, com sua própria família, tem a oportunidade de tatear esse “poder” e essa vulnerabilidade de ser o que antecede, de ser o primeiro. Todavia, não tem mais seu pai para se redimir, não tem como voltar o tempo. Aparenta carregar uma grande frustração por não ter se apropriado devidamente de seu Dharma. Reconhece, dolorosamente, que à sua força faltou sabedoria, serenidade, discernimento, qualidades ofuscadas pela dor de não se sentir amado e pertencido.

É que às vezes a religiosidade ganha peso à despeito do amor, e nesse contexto as pessoas se tornam frias, contumazes, duras, cheias de verdades e fé vazia. Nascer e crescer nesse contexto exige uma bravura daquelas que não tem medo de romper, mas que também, e principalmente, não tem medo de fundir-se.

“Um homem de sorte” não deixa de ser um título irônico. Perde-se o que se tem de mais precioso. Onde está sua força está sua fraqueza.

Para finalizar, preciso pinçar a delicadeza da personagem de Jakobe. No transcorrer de sua história vai ficando clara a razão de sua escolha inicial – casar-se com um viúvo mais velho, com duas filhas órfãs de mãe. É que Jakobe, discreta e atenta, carrega um coração amoroso, sensível, altruísta. Ela é a personificação judaica do amor “cristão” pregado pelo pai vigário de Peter. Mais uma ironia da vida.

O filme é longo, é verdade! Talvez para nos permitir o vislumbre de uma trajetória humana – onde tudo começa e onde tudo termina.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

Roma - um filme de Alfonso Cuarón




Há alguns dias assisti a um filme daqueles de tocar a alma. Tenho visto filmes legais, mas este foi diferente. Se há um oásis escondido dentro de nós, de água pura e serena, cujo caminho até ele, às vezes, nos esquecemos, Roma, com seus personagens extraordinariamente humanos, se encarrega de nos iluminar o caminho. Assistir a esse filme foi o mesmo que tocar essas águas e saciar a minha sede.

O filme, semi-autobiográfico, conta a história dos primeiros anos de vida do próprio autor – Alfonso Cuarón, sob o olhar da doméstica Cleo. Se passa no distrito de Colonia Roma, na Cidade do México, nos anos 70. Cleo engravida na primeira relação sexual de sua vida e é abandonada. Simultaneamente, sua patroa é deixada pelo marido e se vê sozinha na criação de quatro filhos. Juntas, comungam o amor por essas quatro crianças e aquela força que brota quando mais frágil nos encontramos.

Não sei ao certo o segredo do filme. Talvez uma combinação de fatores: sensível, descaradamente cotidiano, simples, real, bem produzido, impecável.

Há muito para se destacar nesse filme, mas foi sua dualidade e a sinergia desses opostos, em movimento, que proponho aqui um destaque.

Fotografia em preto-e-branco, contexto público e privado, classe social baixa e média, abandono e acolhimento, fragilidade e força, doçura e amargor - opostos em movimento, como yin e yang, fazem a roda da vida girar desenrolando uma história tocante, daquelas que acendem uma luzinha dentro de nós.

O que dizer também da beleza da sororidade entre as duas mulheres – patroa e doméstica - tão diferentes e tão parecidas ao mesmo tempo. Compartilham, para além das dores coletivas do feminino, o amor por aquelas crianças, a amargura do abandono, nos revelando uma verdade por vezes esquecida – a de que a própria dor nos sensibiliza para a dor do outro, e nesse encontro, para além da empatia, nos curamos e nos fortalecemos.

Numa das últimas cenas, onde Cleo, entorpecida de sofrimento pela recente perda que teve, entra em mar agitado para salvar as crianças, sem saber nadar, vislumbramos, talvez, a mais preciosa mensagem dessa obra prima: ao salvar o outro, nos salvamos de nós mesmos.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

En équilibre






Era um fim de semana “sem autonomia”. Explico-me: sem combustível para a Maria Gasolina aqui desembestar com seu pimpolho. Após uma maratona leve e em agradável companhia no Parque da Cidade, chego em casa e proponho um filminho antes do almoço que encaixasse naquele domingo quase inerte.
Despretensiosamente, escolhemos um “francesinho” que nos garantisse um mínimo entretenimento dominical.
Ahhh, mas que grata surpresa tivemos. En équilibre se revelou um presente inesperado e tocante.
Um filme de 2015, escrito e dirigido por Denis Dercourt. Conta a história de Marc Guermont, um experiente dublê equestre que sofre um acidente durante uma filmagem e se vê, diante de um futuro financeiro incerto e escasso, pressionado a assinar um acordo indevido e apressado com a seguradora.
A perita de seguros designada para seu caso, Florence Kernel, se caracteriza por ser bastante diplomática, cordial e simpática em suas tratativas, diferente de seus colegas de trabalho mais linhas-duras e agressivos. Ela tem como missão fazer Marc assinar o contrato em um curtíssimo prazo de tempo, de modo a não lhe dar tempo de uma avaliação mais cuidadosa.
Todavia, sua estratégia não funciona muito bem com Marc, que não se sucumbe à pressão de uma decisão precipitada e veladamente danosa. Marc não sofre de desespero. Equilibra lucidez e paixão pela vida. É obstinado, forte, e sabe sem saber, que é cocriador da sua existência.
É nesse intervalo de tempo – de persuasão e resistência, que o amor acontece. A força e obstinação daquele homem inspiram a esquecida pianista escondida por trás da perita de seguros a acordar seu dom. Sua sensibilidade para a música sempre esteve ali, mas faltava-lhe a perseverança que o acreditar em si-próprio promove; o esforço diário, o suor, a dedicação que nos revela/relembra nosso talento pessoal. Foi necessária a admiração por aquele homem, desdobrada em amor, para que seu dharma surgisse claro e forte a ponto de fazer Florence abandonar o trabalho na seguradora e se dedicar novamente à música.
Não vou aqui narrar toda a história, afinal, pretendo apenas que este texto seja um convite. Porém, desse filme, posso assegurar: que a história de amor não é piegas, que a deficiência física não se apoia em vitimismo, lamentos ou queixas, e que o heroísmo não é “norte-americano”, ao contrário, é sutil, belo e inspirador.




segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Um perfil para dois – de Stéphane Robelin (2017)




Tem filme que parece uma manhã de primavera, com um céu claro, limpo, uma brisa sorrateira, e uma miragem multicolorida de um jardim distante. Um discreto perfume e uma atmosfera que afirma que a Terra é o mais doce lar. Neste cenário, até as bizarrices humanas são mitigadas, e o que é um problemão, de repente, se dissolve e tem um fim inusitado e promissor.

Quando sentei na poltrona do cinema, falei para o meu amigo: “podia tanto ser um filme que faça valer a pena sair de casa”. Quisera no fundo dizer: “que fizesse valer a distância do sorriso mais lindo do meu pequeno guri”.

O Universo capturou meu desejo, e me entregou um filme leve, surpreendente, original, daqueles que nos faz sair do cinema com uma ginga meio bossa nova nos passos e na cachola.

Mas calma lá, não é um filmaço – é um filme que vale a pena. Entende?

A obra conta a história de Pierre, um viúvo aposentado que perdeu o gosto de viver. Sua filha contrata Alex para lhe ensinar a usar o computador. Alex ajuda Pierre a criar um perfil num site de relacionamento, só que Pierre decide usar a foto de Alex, sem consultá-lo. Ele acaba fazendo contato com a jovem, doce e sensível Flora. Devido a sua travessura, marcar um encontro com ela acaba sendo um problema a ser resolvido.

Penso que todo filme tem uma razão de se enganchar na gente. No meu caso, ele tocou numa questão latente, que anda fazendo parte das minhas reflexões íntimas: a CRIATIVIDADE. Não exatamente a criatividade do artista que culmina numa obra de arte. É uma criatividade para além dessa. Uma criatividade intrínseca ao ser humano, que se manifesta no seu modo de viver, de se desenvolver, de se revelar enquanto humano, com uma identidade, com suas formas de pensar, agir e enxergar o mundo. É como se na pluralidade infinita das manifestações, nos contentássemos com umas poucas configurações/padronizações do modo de viver e se relacionar.

Na narrativa em questão, o filme nos mostra uma forma atualmente conhecida de conhecer pessoas - pelos aplicativos de encontro. Todavia, uma transgressão acaba se desdobrando em uma história original. É preciso sair do julgamento do que é correto ou incorreto para ousar uma forma não usual, ainda não explorada, de fazer acontecer as coisas.

Neste caso, foi Pierre, por não ter nada a perder, que se arriscou. E aí entra outra reflexão: é preciso ter a Morte nos beirando? É preciso esperar chegar em tão avançada idade? É preciso carregar o peso de uma “quase e mal interpretada senilidade mental” para arriscar fazer “o que não se deve”? É preciso um certo descrédito pessoal para não levar a vida tão à sério a ponto de “carregar na tinta”? 

segunda-feira, 12 de junho de 2017

Blue Jay



Direção: Alex Lehmann
Atuação impecável de Sarah Paulson e Mark Duplass

Você teve um grande amor juvenil? Continua com ele até hoje? Se não, saberia explicar a razão? O que de fato os separou? As razões daquela época, ainda fazem algum sentido? Passado tanto tempo, sente que ficou algo pendente? Já imaginou como poderia ter sido diferente? Se pudesse voltar ao tempo, com a maturidade de hoje, faria algo diferente?

São tantas as perguntas pra quem já teve interrompida uma relação forte, tipo >9.0 na Escala Richter. Muitas vezes, entender o que se passou é o único remédio para curar a ferida que insiste em não cicatrizar. E se não paramos para refletir e buscar entendimento, a vida (ou as vidas) cuida disso, e os faz a seu tempo, geralmente pegando-nos desprevenidos.

Essa é a história de Jim e Amanda - um jovem casal apaixonado que não resistiu à insegurança e imaturidade juvenis. Casualmente, se reencontram mais de vinte anos depois, recebendo, receosos, a oportunidade que a vida os deu de passarem a limpo uma história incompreendida.

Simples, honesto, direto, barato, na medida (sem excessos ou faltas), esse filme faz-me lembrar outro, tão delicado quanto – “Once”. Blue Jay é uma obra capaz de realçar a curiosa interferência do Tempo sobre as experiências. O Tempo como um maestro eloquente, regendo encontros e desencontros feitos notas musicais de uma sinfonia amorosa.

O filme – todo ele - é um diálogo que começa com notas “titubiosas”, tímidas, acanhadas, em um encontro inesperado e emocionalmente “tisunâmico”, num ambiente muito romântico – o supermercado de uma pacata cidade. Sim, os lugares de passagem, de distração, de rotina, sempre me pareceram capazes desse truque, ao se contrastarem com o estado de presença profundo e a atmosfera “slow motion” característicos dos inesperados encontros amorosos. Acabam por realçar os afetos subliminares que compõem a cena. Portanto, sim, os supermercados, metros, shoppings se resignificam enquanto lugares propícios aos verdadeiros encontros. Como disse nosso grande literato, Guimarães Rosa, Felicidade se acha é só em horinhas de descuido. A gente afrouxa enquanto o Universo conspira. A gente solta, deixa fluir, não espera. E então... Acontece!

O diálogo começa assim, vestido de surpresa:
“- Jim?!”
“- Amanda?!”

O olhar espreita, duvida, recua, confirma. Sim, é real. O coração dispara. A fala quase trava. As palavras escapolem meio sem sentido. Disfarçar naturalidade chega a ser caricato. É o inesperado deixando-os zonzos, estúpidos e descontrolados. Um encontro que merecia smoking, perfume francês, penteado, hálito puro e refrescante, digno de um comercial de pasta dental. Mas não, o Momento não avisa que é chegada a hora. Se quem sabe faz a hora, no amor quase nada sabemos. Era aquele um dos momentos mais importantes dos últimos vinte e poucos anos. Atrapalhado, Jim pensa em voz alta: “- Eu não escovei os dentes”.

Um súbito convite para um café é o recurso encontrado por ele a fim de não deixar escapar aquela oportunidade única, de estender um pouco mais a eternidade daquele momento. Mal sabem que esse convite desencadeará um retorno a uma história remota e dolorosamente ABORTADA há tantos anos.

Começam, cada um, um relato resumido de suas vidas atuais, de modo a preencher o curto momento que têm, afinal, sabem sem saber, que a mão invisível do senhor Tempo já reposicionou a ampulheta do efêmero instante. Sabem, sem saber, que muito em breve os ponteiros do relógio retomarão sua velocidade habitual.  Todavia, se os relatos são breves, nem por isso são superficiais. Ao contrario, são eficientes em revelar a mais profunda dor de cada um - a ferida nunca cicatrizada de um amor interrompido. Dessa dor, estamos alguns familiarizados. Pelo menos aqueles que tiveram o privilégio de um amor juvenil, geralmente pouco competente com as palavras, quase sempre inabilidoso na exposição de suas intenções. Em tão tenra idade somos, em geral, suficientemente inexperientes e inseguros em aceitar e cultivar o amor que nos brota.

Diante da frustração, resta aquela vã especulação: Como poderia ter sido se...

O “como poderia ter sido se...” é encenado casualmente, ao entrarem numa antiga loja de conveniência frequentada pelo casal na juventude. Seu antigo proprietário, ainda vivo e operante, sem saber do destino do casal, os reconhece como “os pombinhos apaixonados” de outrora, e supõe que continuaram juntos por todos esses anos. Eles não corrigem o equívoco do velho senhor Wayne, e se permitem, naquele momento, viver essa versão.

É à beira de um lago que, cautelosamente, vão permitindo se revelar mutuamente – uma ferida aqui, uma cicatriz ali, dores crônicas... Paliativos encontrados.

É a vez de Amanda propor um aditivo ao tempo. Pede a Jim para revisitar sua casa - remoto território de convívio.

Não vou continuar com a descrição do filme. Paro por aqui. Os desdobramentos desse retorno às antigas lembranças trarão à tona um trauma incompreendido, uma oportunidade de escuta, compreensão e perdão, nos sinalizando que se o trator-tempo atropela, ele também prepara a terra para nova semeadura.


Delicado e intenso. Recomendo!

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Perfect Sense – 2010. Dirigido por David Mackenzie



Nossos sentidos são portais? Portais para o quê?

Ora eles nos conduzem a estados de consciência alterados, ora eles nos distraem, nos fazendo perder o bafo mais quente e úmido da vida. Os sentidos podem ser como um mantra nos conduzindo a estados meditativos. Por exemplo, ao colocarmos plena atenção num som da natureza temos a possibilidade de, gradativamente, aquietar nossa mente, e escorregarmos para o salão secreto do nosso inconsciente, ou a integração serena com a natureza (a nossa natureza).

Infelizmente, quase sempre, e ao longo de toda a vida, eles são instrumentos de distração.  Usamos nossa audição, por exemplo, para escutar todo tipo de ruído externo, porém, muito pouco para a percepção dos nossos ruídos internos, nossas próprias falas desconexas e desalinhadas, muito pouco para detectar nossas incoerências (Veja, longe de fazer um julgamento sobre a incoerência. Alguns dirão, “Sou incoerente. Não tenho compromisso com a coerência”. Ok. Tudo bem. Mas você sabe identificá-las? Já farejou sobre o teor de suas incoerências? Elas dizem muito sobre você! E se você, na maior parte do tempo, não se sente pleno, sinto dizer, mas é sadio que você as dissolva, para o seu próprio bem.).

O que dizer da visão?! Como ela nos incentiva à grande cilada do julgamento! Vejo, logo julgo.

E por aí vamos... Um sem fim.

O filme Sentidos do amor, toca nessa questão. Narra uma pandemia, onde os humanos vão, gradativamente, perdendo seus sentidos: olfato, paladar, audição e, finalmente, a visão.

Mas perder um, dois, três sentidos, não é suficiente para o despertar em relação ao “piloto automático” que a humanidade vive, porque eis que se apresenta uma outra habilidade humana, também muito mal compreendida, sua capacidade de ADAPTAÇÃO. Uma adaptação muito mais identificada com a acomodação do que com a resiliência. É dizer: perco o olfato, mas... Que diferença faz? O uso que faço dele é tão raso, que não me faz tanta falta. Reservo tão pouco tempo para me deliciar com o perfume que exala do jardim que cruzo semanalmente, da comida que me sirvo diariamente, da pele da pessoa amada que adormece todas as noites ao meu lado.

Logo perco o paladar, e novamente, da perspectiva supérflua de sua apropriação, é questão de tempo para que eu nem me lembre que um dia, remoto, saboreei a rosquinha frita da vovó quando chegava, criança faminta, do clube; que o sabor do primeiro beijo foi um pouco estranho e inesperado; que a água com ervas desceu refrescante e harmônica com o menu servido no almoço.

Em seguida, perdemos a audição. Deixamos de escutar o outro; agora literalmente!

Não sei exatamente quando a “ficha” da humanidade começa a cair, mas nesse ponto do filme (da não escuta), começamos a farejar, de forma mais evidente, onde isso tudo vai dar. E é num lapso de tempo muito curto, entre o não escutar e a espreita da escuridão (perderemos a visão) que nos damos conta de um sentido sutil, imaterial, que me liga ao outro. Um sentido sublime, que pode ser a fusão de todos estes sentidos, potencializados. Nesse limite entre a terra firme e o abismo, experimentamos um Encontro, a totalidade do nosso ser.

Parece que é na falta, no vazio, que reconhecemos o todo que somos.

Os personagens principais do filme, correm desesperadamente, para aquela última chance de um abraço sob a luz da visão – metáfora incrível do nosso mergulho no Todo.

“São os teus braços, dentro dos meus braços. Via Láctea fechando o infinito” - Florbela Espanca

----


“Sentidos do Amor” é uma produção britânica, vencedora no Ediburgh Film Festival

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

A 100 PASSOS DE UM SONHO



Direção: Lasse Hallström
Ano: 2014

É um daqueles filmes que usa a metáfora da culinária para falar de questões humanas universais, tais como o amor, a família, o propósito de vida, as divergências culturais, a tolerância e outras tantas questões que, inevitavelmente, movimentam nossas vidas, nos proporcionando o experimento do que é ser humano.

O filme segue a receitinha de sucesso trilhada por outros filmes com a mesma temática, com estrutura conhecida e desdobramentos previsíveis. Os clichês sobre o que é ser francês ou indiano quase comprometem definitivamente o filme. Porém, ao não deixar se enganchar nesses deslizes, é possível perceber algum potencial da obra em fazer dançar algumas preciosas ideias.

O enredo: uma família indiana, após uma tragédia que leva à morte a estimada mãe da família, passa anos perambulando pelo continente europeu, mudando de cidade de tempos em tempos, até que um dia, devido a um “quase” acidente fatal (do destino!) se fixa em um vilarejo francês. Lá, por “teimosia intuitiva” do pai, resgatam um antigo casarão para abertura de um restaurante indiano. Detalhe: exatamente em frente a um respeitado restaurante francês, estrelado no famoso Guia Michelin. Bem, minimamente, já sabemos os desdobramentos que teremos.

Acontece que, deixados de lado os temas mais clichês do filme, como os (des)afetos que vão surgindo no decorrer da obra, seus encontros, e a trajetória do jovem chef de cozinha, Hassan, até seu estrelato no mundo da alta gastronomia, algo raro vai se desvelando bem diante dos nossos olhos – aquilo que denominamos SINCRETISMO. Algo que, com a força por vezes devastadora da globalização, cada vez é mais raro de acontecer. Essa “protocooperação” entre duas culturas extrapola a arte da culinária – talvez ela seja apenas o ponto de partida. Sim, porque algo novo nasce. Quando Hassan é guiado por Madame Mallory (autoritária chef do restaurante francês) pelos conhecimentos da refinada gastronomia francesa, sem abandonar a tradição indiana, um salto culinário acontece de fato, mas não menos que um salto daquelas consciências envolvidas – um entendimento de que antes de sermos franceses ou indianos, somos humanos, e que esse “humano” tem muito a se experimentar. Primeiro o reconhecimento, que se dá de forma gradativa. Logo, abre-se espaço para a assimilação recíproca, e então, o próprio ser se transforma, se expande dentro do universo que contempla algo divino no/do humano. Do mesmo modo que o prato servido no restaurante francês já não é o mesmo, a Sra. Mallory também não o é. Não é só o restaurante que ganha uma estrela. Seus personagens principais tb. Nitidamente são modificados – mantêm suas essências, mas já são outros, a partir do outro.

O tema é muito mais que uma guerra de menus!

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Que horas ela volta? - filme de Anna Muylaert (2015)




De um extremo ao outro


PERSPECTIVA Nº 1 – DO QUE NÃO SE COMPRA. DAQUILO QUE SE CONSTRÓI.

A vida é um eterno chegar e partir. Isso nós já sabemos. Partem amigos, maridos, chefes, vizinhos, professores... As pessoas partem da vida da gente, e no ângulo oposto, nós partimos das pessoas. Mas num elo mais forte, entre pais e filhos, essa partida, breve ou longa, causa grandes estragos.

Quem parte tem suas razões. Quem fica, nem sempre sabe a razão do abandono ou despedida.

Também há aqueles que, embora nunca tenham partido (fisicamente), também nunca estiveram.

Expectativas frustradas... Tempo que não tem volta.

De um lado temos uma mãe que tinha total condição de exercer a maternidade plenamente, mas que a deixa a cargo da empregada. De outro, uma mãe que precisa partir para ganhar o sustento que garantirá melhores condições futuras para sua filha. Filhos gerados, ou só criados – não importa!, os elos são feitos de afeto. Uma criança encontra na empregada a mãe que carecia. E quando mais tarde a mãe biológica tenta ocupar seu papel (ilustrada na tentativa de mitigar a frustração do filho por não passar no vestibular), não se sente confortável, não se adequa a ele, afinal, esse “posto” não se compra, se conquista.


PERSPECTIVA Nº 2 – O QUASE

O “quase” nunca é. O “quase” dói por não ser. O “quase” engana, mas não convence. Há coisas que são ou não são, por não permitirem meio termo. A polidez não substitui a verdadeira estima. A patroa polida e educada sente o incômodo dever de retribuir aquilo que o dinheiro não paga: amor e dedicação. Então, no afã de mostrar seu pseudoreconhecimento promove a serviçal a “quase da família”.

Meu deus!!! Como esse “quase” revela tudo!

Como pagar (atenção: não digo retribuir) a empregada por exercer o papel de mãe a que ela declinou? O papel de “dona de casa” assumido dedicadamente pela empregada, que cuida e promove um lar aos que ali vivem? Simples. Promovendo-a a “quase membro da família”.


PERSPECTIVA Nº 3 – VISLUMBRO-ME FACILMENTE COM O QUE CAREÇO.

O marido vivo-morto. Não passa de uma sombra que vagueia dentro da própria casa, perdido entre o que poderia ter sido e o que é. Qualquer vislumbre de vitalidade, de autoconfiança, de determinação, de potência – no caso personificada pela filha da empregada – pode deslumbrá-lo, acordá-lo da letargia / apatia que o domina.


PERSPECTIVA Nº 4 – QUEM INVENTOU ESSAS REGRAS?

O que me cabe como patrão? O que me cabe como empregado? Qual o meu lugar? Até onde posso ir? Posição social é herança a ser deixada aos filhos? Quem inventou essas regras sociais? Por que não as questionamos? Minha submissão é uma herança hereditária?

Cabe à filha da empregada trazer à tona todas essas questões e, principalmente, romper a polidez disfarçada de respeito. É ela quem aponta o engano do “quase”. Que nos mostra que esse status quo é uma armadilha social, uma prisão que nos faz resignar ao “quase”: quase sermos merecedores, quase sermos dignos, quase sermos valorizados, quase sermos ouvidos, quase sermos da família.


Vale destaque a belíssima cena da piscina, quando a empregada-mãe-nordestina, no ato sorrateiro de entrar na piscina, ousa ultrapassar a linha invisível da discriminação.

PERSPECTIVA Nº 5 – EU, VANESSA

Como ser adestrado, começo assistindo ao filme ingenuamente. “Que garota é essa que não se enxerga? Que prepotente!”; “Ainda vai fazer a mãe perder o emprego”; “Ela está seduzindo o patético patrão?”;

Termino consciente de que não há certo ou errado num mundo onde tudo é ponto de vista, onde tudo é ilusão (Maia); Que as regras estão aí para serem questionadas; Que autorespeito pode ser confundido com prepotência, mas nem de longe são a mesma coisa. Que cada um tem a sua história, e ela não vem estampada na cara.

Durante os 110 minutos de filme fui levada de um extremo ao outro, e os julgamentos substituídos por perguntas ainda sem respostas.

terça-feira, 18 de agosto de 2015

GATTACA - Medo, o desafio que nos impulsiona


 
Quando falamos de medo, dá até medo! Mas já perceberam quanta coisa boa pode acontecer a partir dele? Tem gente que pensa que não tem, mas... quem nunca sentiu medo de perder o acesso às criaturas que ama? Não ser bom ou preparado o suficiente? Não ser amado quanto gostaria? De cair gradativamente no esquecimento por aquele que jamais esqueceremos? De não se curar de um grande mal? De sonhar e, mais uma vez, ter seu sonho interrompido?
Às vezes nos paralisamos diante dele. Mas, às vezes, ele nos desafia a tal ponto que nos impele rumo ao imprevisto, ao sem garantia, aos verdadeiros e novos descobrimentos. O medo se torna um convite arriscado para conhecermos nuanças próprias que, na acomodação e na garantia de segurança, jamais seriam percebidas. Desafiar o medo, encará-lo com coragem (com o coração) é ampliar-se. Coragem e determinação andam juntas, sendo o medo o ponto de partida. Coragem parece ser atribuição da alma. À matéria (gene) cabe refleti-la de uma forma mais densa e óbvia.
Eis do que se trata essa história – Um sujeito “classificado” (reduzido) a partir de seu código genético, que com audácia, coragem e determinação prova a si mesmo (A si mesmo!!! Isso é o mais legal.) que ele é muito mais que um gene. E vai além -  que é esse gene que está “a seu serviço”, e não o contrário.  Falando de outra forma: a matéria como reflexo de nossos corpos mais sutis (do sutil para o denso). Quem (ou o que) está por trás? Quem tem as “rédeas” de nossas vidas? Quais os nossos limites? O que significa cumprir a nossa vocação humana?
O filme mostra, cronologicamente, uma disputa de resistência, em alto mar, do personagem principal com o seu irmão geneticamente viável (perfeito) - na infância, quando jovens, e mais tarde, já adultos. E me é inevitável a associação à algumas leituras que tenho feito sobre a Epigenética.
Pra quem não sabe, a epigenética é definida como modificações do genoma que são herdadas pelas próximas gerações, mas que não alteram a sequência do DNA. “Por muitos anos, considerou-se que os genes eram os únicos responsáveis por passar as características biológicas de uma geração à outra. Entretanto, esse conceito tem mudado e hoje os cientistas sabem que variações não-genéticas (ou epigenéticas) adquiridas durante a vida de um organismo podem frequentemente serem passadas aos seus descendentes. A partir do momento em que um óvulo é fertilizado por um espermatozoide, essa nova célula (agora denominada de ovo) dará origem a um conjunto de células que irão originar o embrião. A formação do embrião depende da captação de sinais pelas células, sinais estes que podem vir de dentro das próprias células, de células vizinhas (incluindo as células da mãe) e do meio externo (do ambiente). Os sinais recebidos pelas células irão determinar não somente a morfologia e fisiologia do futuro embrião e indivíduo, mas também o seu comportamento. Nesse sentido, as células respondem a nutrientes e hormônios, mas também a sinais físicos, como calor e frio, e comportamentais, como estresse e carinho”. Há estudos que mostram que “as mães passam aos filhos os efeitos cognitivos durante a gestação, provavelmente liberando hormônios que fazem com que marcadores químicos epigenéticos (não dependentes dos genes) apareçam nos genes de seus filhos, regulando sua expressão depois do nascimento”.
Apesar de receber, ainda bebê, o prognóstico de que seria um ser geneticamente falho, fracassado, e com poucos anos de vida, essa parte de que somos feitos, que está para além da matéria, decide não se resignar, interfere e modifica a “determinação genética” escrevendo uma nova história, se tornando um ser muito diferente do que se previa.
Que ousadia da ciência achar que pode nos definir e apontar nosso “destino”!
Outros pontos também me chamaram a tenção:
- Qual a vantagem de sermos perfeitos (ou quase perfeitos)? Não seria o lance de sermos imperfeitos o “Q” que faz essa vida ter algum sentido? É a partir desse ponto de “imperfeição” que podemos nos movimentar, nos experimentar, seguirmos em direção a algo maior. Do aquém para o além.
- Economizamos uma energia que é inacabável. Pra quê? Postergamos, pra quê? Economizar o que em nós é infindável (amor, plenitude, sabedoria...) não faz sentido. A vida é um convite à exploração! Só temos o momento presente para fazer o que há de ser feito. É em alto mar, voltando-se para o seu irmão “perfeito” e derrotado, que ele diz algo assim: “não guardo energia para voltar”. É dizer, o momento é o “aqui e agora”. É hoje o dia de nos superarmos e “exalarmos” o melhor que há em nós!
Sem dúvida um grande filme. Recomendo!


Referência: MARCELO FANTAPPIÉ, Ph.D., é Professor Associado da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Pesquisador do Laboratório de Helmintologia e Entomologia Molecular do Instituto de Bioquímica Médica da UFRJ.

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Sobre o filme "Preto ou Branco" - de Mike Binder


Se o recomendo? Bem, depende do tamanho de sua lista de prioridades diárias. Não se trata de um filme excelente, imperdível. Mas há algo nele que despertou meu interesse, desencadeando uma reflexão que me levou a outras direções, bastante interessantes. Se não o levar também, pelo menos garanto a atuação impecável de Kevin Costner. Seus olhos são expressivos demais pra minha pessoa! Kkk...
Muito mais do que tocar no tema sobre o racismo como sugere o nome do filme - um racismo alimentado pela própria raça afligida, como faz Jeremiah Jeffers (advogado irmão da vó paterna), sobre o vício que apaga qualquer vestígio de dignidade (Reggie, o pai viciado), este filme sussurra otras cositas más, como, por exemplo, os atributos do Feminino, personificado pela avó Rowena, mãe do pai viciado. Toca também no tema da mágoa bem guardada, numa espera silenciosa por um pedido de perdão, como ponto de partida para a cura. E como se não bastasse, mostra esse impiedoso vício humano de negar nossos vestígios animais.
Pois bem: Rowena é a mulher que acredita no ser humano, que acredita no amor; um arquétipo da grande mãe bem encarnada, que não desiste do filho, que se faz forte para manter a família unida e em harmonia, que procura uma relação harmoniosa e justa mesmo com seu “adversário”, que não perde o foco em proporcionar o que for melhor para sua prole. Rowena acredita que trazer sua neta para perto do pai, poderá salva-lo.
Elliot é a outra parte. É o pai que perdeu sua filha sem ter tido a oportunidade de se reconciliar com ela e ampará-la antes de sua morte. É também o avô que tem a guarda da neta. Elliot não vê sua dor e de sua recém falecida esposa reconhecidas por aquele que ele julga responsável pela tragédia familiar. Neste caso, o arrependimento do vilão (Reggie) - seu pedido de perdão, é um passo necessário para seu processo de cura, e Elliot vive à espera desse dia.
Mas, particularmente, o ponto crucial do filme está na cena do tribunal, onde o avô é interpelado sobre ser ou não racista. Irônico, porque o racismo está, de fato, na outra parte, do lado dos próprios negros. É o avesso do avesso do Caetano!
O mérito dessa obra está em extrapolar esse tema (sou ou não racista), e aprofundar numa questão humana que nos lembra que também somos animais, que temos instintos, que fazemos reconhecimentos por meio dos opostos (preto/branco; claro/escuro; frio/quente) que não devemos ser interpretados pelo nosso primeiro pensamento/ reconhecimento/julgamento, mas pelo que vem depois - nosso segundo, terceiro, quarto pensamento, pelo que fazemos a partir daí. Um homem vê uma mulher e a primeira coisa que “reconhece” são seus peitos. Tá! E daí? Ele é um tarado? Sou apresentada à nova colega de trabalho, uma negra. Primeiro reconhecimento: minha pele é branca, a sua é negra. E??? O que se segue? A questão não é se isso é legal ou não que se dê num “ser de bondade” (nós humanos!), mas reconhecermos nosso lado instintivo para, um dia quem sabe, podermos transcender essa ilusão da separatividade e nos tornarmos plenamente conectados com tudo e com todos.

Você pode se perguntar por que tomei um rumo de reflexão tão improvável. Bem, desconfio que tudo veio à tona porque, no dia anterior, assistindo o canal da National Geographic, aprendi que as hienas organizam um ataque em grupo à sua presa, geralmente de porte muitas vezes maior que os seus, e a come viva. Num primeiro momento me pareceu tão brutal, tão violento. Um hemisfério “além do animal” fazendo julgamentos de um outro que evita reconhecer como seu. Complicou? Vou tomar um recurso poético. Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) pode nos ajudar.
“Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo.  Mas não penso nele
     Porque pensar é não compreender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)                  
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
     Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
     Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
     Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...”