quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Foi apenas um sonho (Revolutionary Road), 2008 - Direção: Sam Mendes





Esse filme toca em uma frustração muito comum, porém muito camuflada: a de se conformar, de se moldar, de atender um modelo de vida padrão e medíocre, que se conforma em nascer, crescer, trabalhar, casar, ter filhos, casa própria, envelhecer e morrer – tudo isso sem muitos riscos, sem grandes entusiasmos, sem tesão, sem DHARMA. A frustração de calar uma voz interior que anuncia, grita, exige que a vida seja mais que isso, que proclama que ela é única, que não tem receita, que a nossa felicidade provavelmente está nessa busca que nos faz expandir a partir da vivência de nossas potencialidades. Ouvi-la pode ser um incômodo e, às vezes, preferimos acreditar nada acontecer. Mas, se a ouvimos tão intensa e desesperadamente, é preciso CORAGEM para segui-la.

April e Frank formam o típico casal aparentemente perfeito, classe média dos anos 50. Tudo parece correr como deveria, porém logo April perceberá que não se sente feliz. Ela não se conforma em viver pela metade, uma vida opaca. Quer seguir essa voz interior, pois se sente infeliz ao abafá-la. Vê, como em um espelho, seu marido fazendo o mesmo: desperdiçando a potencialidade de seu ser. Como uma criança que esperneia, grita, se debate revoltada diante do castigo que lhe é imposto, ela luta em sair desse espetáculo maçante que encena uma família americana padrão. No afã de escapar dessa armadilha social, April acredita que a solução está fora – uma mudança de país, deixando pra trás casa própria, trabalho medíocre, vizinhos curiosos, nação. Convence o marido, Frank, que em Paris serão felizes, realizarão seus sonhos juvenis.

Vivendo essa ilusão, cuja solução se resume em mudar de “ares”, vivem dias de extremo entusiasmo com os preparativos: anúncio de demissão no trabalho, aquisição de passagens aéreas, preparação dos filhos, despedida dos vizinhos. Tudo isso gera uma inveja alheia (entre vizinhos e colegas de trabalho), pois deixam pistas evidentes de que todos sofrem da mesma doença, a NORMOSE * (patologia da normalidade).

A vida então flui deliciosamente até que começa a se manifestar a “corrente do medo”, o boicote, que nos faz vacilar, nos faz tremer e duvidar de, até que ponto queremos nos atirar rumo ao desconhecido e sem garantias. Isso nos lembra a Jornada do Herói, de Joseph Campbell – o chamado, as provações, a superação e a conquista de um novo e mais amplo estágio de consciência. Pena que nessa história os personagens principais não superam as “ilusórias” provações.

Uma tentadora proposta de promoção no trabalho e uma gravidez acidental serão, nesta história, as “provações” que terão que superar. Desculpas inconscientes para justificar uma acomodação vergonhosa (afinal, já se reconheceu a voz interior) e sem riscos a uma vida sem graça e previsível. É o preço que se paga por não lutar pela felicidade.

Mas até aqui não há nada de tão incomum ou espetacular que fizesse desse filme uma obra marcante, a não ser a atuação brilhante de Leonardo DiCaprio e Kate Winslet.

O que torna esse filme um cinco estrelas, digno de entrar para a lista dos melhores filmes de todos os tempos, é a forma como é deflagrada toda essa trama inconsciente de boicote à possibilidade de ser feliz – a aparição daquele que vai apontar de forma transparente e lúcida o mundo de ilusões em que os personagens estão imersos. Esse papel caberá a John, o filho “louco” dos antigos proprietários da residência do casal principal, que acaba de sair de uma clínica de recuperação. Em uma cena brilhante que se dá em volta da mesa de jantar dos Wheeler, John, com seu total descompromisso em atender os padrões de comportamento social, curado da normose que nos priva de viver a autenticidade de nosso ser, é o responsável por desvelar o boicote no qual o casal está se infligindo.  É o responsável por deflagrar o pseudo impedimento que uma gravidez não planejada pode ser para a mudança tão desejada quanto temida. Nesse caso, o “louco” é aquele com o dedo em riste, apontando ao casal seus medos, suas fraquezas, que seus fantasmas não passam de uma sombra de si mesmos. Vai além, mostrando também a frustração e a raiva contidas que cada um carrega ao projeta-las no parceiro, num jogo vicioso de culpar o outro por sua própria infelicidade. Isso fica claro já numa das primeiras cenas do filme, quando o casal está voltando de carro pra casa após uma estréia teatral infeliz de April nos palcos. Vê-se claramente uma estratégia comum entre os casais, mas pouco eficaz, em que um tenta fazer o outro se sentir culpado, na expectativa infantil de ter sua própria dor amenizada. John personifica o grande intruso, inconveniente, que ao desfazer os nós que justificam a inércia dos Wheeler, gera mal estar e desconforto.

Esse acontecimento sela uma situação que não tem volta. Coloca o casal em uma encruzilhada: ou se ajusta/aperta mais a máscara de casal perfeito e realizado, classe média, conformado; ou se abre definitivamente para a força vital do coração, que empodera o ser e o impele a buscar corajosamente sua felicidade.


Infelizmente Frank se acovarda, se acomoda, se esconde no papel que lhe é familiar e seguro. Já April, parece apenas prorrogar o grande dia. Parece decidida a “preparar o terreno” para a esperada mudança que virá a médio prazo. Digo, parece, porque tenta solucionar o “problema” da gravidez se arriscando num aborto solitário e domiciliar. Infelizmente sua história é interrompida com o agravamento do procedimento abortivo que a leva à morte. Triste fim. Uma jornada interrompida e dolorosa.  Porém, dor maior de todas é aquela de Frank. Uma dor por não tentar, por se conformar, por fingir não perceber o que nunca esteve sanado – a ferida aberta. Uma dor que não vislumbra o seu fim. A dor do QUASE, do chegar perto e recuar. A dor de ser FRACO.

5 comentários:

  1. Mais uma excelente análise e comentário, Vanessa. Parabéns!
    Com a sua permissão, pretendo replicar o texto - e recomendar o filme - no meu blog (www.obemviver.blog.br).
    Abração

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  2. Para mim é uma honra sua recomendação da minha reflexão. Obrigada por me ler. Grande abraço.

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  3. Realmente muito bom o seu comentário e análise. Diria até que o comentário enriquece e vai além do filme. Parabéns, amiga.
    Sobre o assunto, cito Thoreau: " A maior parte das pessoas vive vidas de quieto desespero." ( frustadas pela vida mecânica e repetitiva).
    Robert Frost e George B Shaw, entendo, foram otimistas.
    Disse o primeiro: "Vínhamos retendo alguma coisa que nos deixava fracos;até descobrirmos que essa alguma coisa éramos nós mesmos." (descobrimos mesmo? conseguimos soltar? - Como diz Bhagavan, "ver é ser livre").
    George B. Shaw escreveu: Algumas pessoas vêem as coisas como são/estão e dizem por que? Eu sonho com coisas que nunca existiram e digo, por que não?
    Abraco carinhoso, namastê.
    Jorge Ivan

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    1. É isso mesmo Jorge Ivan: "Será que vimos mesmo (o que nos trava, nos limita)? Talvez, ver/detectar, seja só um mergulho raso. Profundo é o Compreender, o Saber Ser, o Sentir, estes necessários para que ocorra a transmutação - o que Bhagavan quis dizer com "VER é ser livre".
      Retribuo o carinhoso abraço. Namastê!

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  4. O filme nos afeta por mostrar como costumamos ter uma vida medíocre (no sentido mediano). Todos nós achamos que fomos princesas, reis ou Napoleão em outras vidas, mas nunca um plebeu desdentado. Aí quando a realidade nos toca, é dureza.

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